Desconstruindo o despotismo na Umbanda (Parte I)

I - A Genitocracia Espiritual (1)

"Despotismo:
Acepções:
substantivo masculino
Uso:
pejorativo.
1 o poder isolado, arbitrário e absoluto de um déspota.
2 Derivação: por extensão de sentido.
forma de governo baseada nesse poder.
3 Derivação: por extensão de sentido, qualquer manisfestação de autoridade tendendo a tirania e a opressão."
Dicionário Houaiss


As vezes ao desenvolver um tema, ao focalizarmos uma determinada particularidade, podemos gerar a percepção de que estamos generalizando. O título deste artigo, de forma alguma, significa que exista uma situação dominante de despotismo na Umbanda, mas imputa, que constatamos a sua existência setorizada e de forma bastante atuante e presente no movimento umbandista.
Despotismo é inaceitável sob qualquer forma, pretexto, nível de intensidade ou abrangência. Não se justifica, nem como meio e nem por fim algum. Sua prática sempre trazem consequências danosas para indivíduos em qualquer coletividade.
No movimento umbandista, o despotismo está escondido sob o véu do que chamo de Genitocracia Espiritual corporificado através do Babalocrata e da Yaloricrata dependendo se quem a pratica são os Babalorixás (Pais-de-Santo) ou Yalorixás (Mães-de-Santo).
Desculpe-me os neologismos (2), mas não consegui encontrar nada melhor, que servisse aos conceitos que desejo expor.
O Babalorixá ou a Yalorixá são considerados os genitores espirituais dos terreiros que comandam. Eis o motivo dos adeptos serem denominados de filhos espirituais ou filhos-de-santo. Evidentemente, que outros títulos e denominações existem mas, aqui neste artigo e fundamentalmente pelo Brasil afora, Babalorixá/Pai-de-Santo ou Yalorixá/Mãe-de-Santo são os títulos mais usados para identificar aqueles, que ocupam o posto hieráquico maior de uma casa umbandista.
Para eles (Babalorixás/Yalorixás) tudo converge e literalmente tornam-se o centro de toda coletividade. A eles todos os filhos pedem a benção, todos os assuntos passam pelo seus crivos, nenhuma decisão é tomada sem a suas orientações e respeito a suas vontades. Não poderia ser de outra forma.
Geralmente são eles os fundadores das casas espirituais, gestores da coletividade que se forma e preceptores (mentores, instrutores ou educadores) de todos os adeptos.
Quanto a isto não temos nenhuma crítica.
Afinal, muitos são os Pais e Mães-de-Santo, que honram o cargo que ocupam, dignificam o bom nome da Umbanda e buscam pautar o inter-relacionamento com seus filhos-de-santo, através da ética, da moral, da boa educação, em prol sempre da evolução espiritual dos que se colocam sob as suas orientações.
Isto é um tipo de autoridade. Autoridade legitíma e que mantém vivo os elos entre os Pais/Mães-de-Santo e seus respectivos filhos espirituais, no entanto, é também um poder. Exatamente, quando esta autoridade é usada exclusivamente como poder, que podemos encontrar uma situação de perigo!
No meio de tanto trigo, sobrevive um joio resistente, que se vale do que chamo de poder genitocrático, base essencial para a geração da forma que se traveste o despotismo existente na Umbanda, caracterizado pela dependência, seja ela, psíquica, psicológica, espiritual etc.
Secularmente, os Pais e Mães-de-Santo incorporam um papel de assimilador consciencial (substituto de consciência) de seus filhos-de-santo. Servem como uma espécie de "esponja" que tudo absorve para dar uma solução, uma orientação e fornecer uma decisão, que então é seguido pelo filho-de-santo a risca.
Se bem intencionados nesse papel, podem gerar resultados altamente gratificantes, mas se mal intencionados, os resultados são desastrosos e, se mesmo assim forem considerados positivos (vai depender do ponto de vista), precisa se descobrir para quem.
O poder genitocrático, que não é exercido por Babalorixás ou Yalorixás, mas sim por Babalocratas e Yaloricratas, provoca uma escravidão da consciência, que "prende", "amarra", indefinidamente o filho-de-santo as vontades e desejos de seu preceptor.
Totalmente cego, munido invariavelmente por um fervor religioso, o filho-de-santo não percebe a manipulação que está sendo vítima. Ele acredita em tudo que se deseja que ele acredite. A genitocracia e seu poder é algo sutil as vezes, tanto para quem exerce, como para quem lhe sofre a influência.
Este poder é auto-alimentado pela vaidade, orgulho, prepotência e arrogância de quem nunca reconhece que os possui. O poder genitocrático é por estes defeitos maquiados, sendo que o Babalocrata e a Yaloricrata acreditam estar apenas manifestando os seus sinceros desejos e vontades daquilo que chamam de suas "verdades".
Para quem sofre esta influência é algo perfeitamente natural e como se acredita em tudo, realmente as consequências lhe trazem efeitos positivos, satisfação e prazer.
Algum tempo atrás, eu li em um livro espírita, que as recuperações conquistadas pelas pessoas que largavam o vício das drogas, o alcoolismo e situações correlatas, por conta de se tornarem evangélicas, era o mesmo que substituir um vício por outro, nesse caso Jesus. Bem, para quem deixou esta vida pregressa para trás é algo extremamente benéfico, mas se analisarmos por outro prisma vício é vício, seja ele uma droga qualquer ou Jesus.
O que eu quero dizer é que a psique, a alma da criatura humana continua presa a alguma coisa, para poder manter, neste caso específico, um equilíbrio de vida.
Estamos falando de uma MULETA espiritual.
Seja, para o recém convertido evangélico do exemplo, ou para o umbandista, vítima do poder genitocrático, o que importa é o resultado conquistado. Para o evangélico a cura, para o umbandista os benefícios recebidos. Para ambos não importa e na verdade não sabem, que continuam totalmente viciados, só que houve uma troca. E mesmo que fossem avisados não acreditariam.
O despotismo na Umbanda é provocada pela dependência exagerada imposta pelos genitocratas e aceitas pelos crédulos filhos-de-santo com suas fervorosas ingenuidades.
O poder genitocrático é um poder de sedução e manipulação podendo chegar as raias da fascinação pura e simples.
Os genitocratas abusam e usam deste poder em benefício próprio. Para isto, não se incomodam de distorcer a realidade, de transformar mentiras em realidade.
Quantos filhos-de-santo passam acreditar que devem mais fidelidade e lealdade, atenção, respeito e consideração ao genitocrata, do que aos seus pais e mães, esposas ou maridos, filhos e filhas, isto é a sua verdadeira família? Inúmeros. Muitos largam as suas responsabilidades pessoais e familiares para dedicarem-se exclusivamente a satisfazerem os desejos e vontades do genitocrata.
Quantos já não foram prejudicados, seriamente. no convívio familiar, no emprego, nos estudos, por acreditarem estar fazendo o certo por indução e manipulação do genitocrata?
O genitocrata ainda tripudia e desdenha da fidelidade canina do leal filho-de-santo, é comum se ouvir frases, como por exemplo: "Esse daí faz o que eu mandar! Basta eu dizer faça isto ou aquilo que é na hora!"
O genitocrata precisa deste poder e desta capacidade para escravizar aqueles que garantam a sua sobrevivência, já que vivem da religião e não para religião.
Necessitam deste poder para angariar uma legião de bajuladores que facilitem o seu conforto, tendo em vista serem pessoas extremamente preguiçosas.
Se utilizam constantemente deste poder para formar um séquito (seguidores) de maravilhados, que produzam a propaganda gratuita (boca-a-boca), para aumentar a coletividade e assim tornar sempre renovável o seu círculo de influência.
No pleno exercício despótico, os genitocratas escolhem seus eleitos, entre os mais crédulos e ingênuos ou os que mais temem o seu poder. Este pequeno grupo, logo tachado de seus verdadeiros filhos-de-santo, os mais fiéis, possui características facilmente identificadas:
a) seus membros estão sempre prontos a colaborar financeiramente.
b) todos tem seus espaços garantidos através de uma divisão informal de tarefas ou utilidade, por exemplo:
- existem os que trabalham na manutenção do terreiro (limpeza, decoração e cuidado com os fundamentos da casa);
- os que tomam a posição de reunir e juntar, sempre que necessário, os demais em torno de uma causa qualquer de interesse do genitocrata;
- os que cuidam de festas;
- os que são usados como amigos e confidentes;
- os que se envolvem com todas as causas que represente perigo e ataque a casa espiritual e ao genitocrata em especial etc.
c) é comum, que os membros deste grupo não façam parte da hierarquia da casa, mas que sejam eles o verdadeiro poder por trás da hierarquia. Sem o apoio destes nada é realizado dentro da casa.
d) geralmente, a área de atuação e influência deste pequeno grupo, extrapola o círculo religioso para penetrar e agir no nível familiar do genitocrata, afinal quanto mais ajuda melhor e se seus familiares podem ser beneficiados, que assim seja. Esta ajuda familiar, no entanto, é entregue diretamente ao genitocrata e ele é que faz a distribuição ou a partilha de acordo com sua vontade e desejo.
e) não, os membros deste grupo não sabem de tudo o que acontece e se passa na vida do genitocrata. Eles tomam conhecimento do estritamente necessário, cabível ao tamanho do seu espaço no círculo de influência e sempre uma versão da história, que seja adequada para as reações, que o genitocrata espera dele.
f) quando estão na presença do genitocrata, juntos ou em separado, sempre são cobertos de elogios, agradecimentos e reconhecimentos. Na verdade, quando ausentes, aos olhos do genitocrata, os membros deste grupo sempre possuem defeitos, seus erros são apontados e suas culpas e problemas são escancarados ao público. As vezes, mesmo presente, pelas costas, existem caras e bocas, comentários rápidos e baixinhos, piadinhas disfarçadas e insinuações maldosas. Quantas vezes avistados de longe é manifestado pelo genitocrata, aos que estão presentes no momento, uma reclamação pelo aparecimento fora de hora ou sem propósito, a solicitação aos presentes que se encerre a conversa que estava sendo travada e que determinado fato ocorrido não seja passado para a pessoa que está chegando?
g) esta é uma estratégia conhecida como mata e cura, seu objetivo é o total controle das pessoas, pois se estas são úteis, não se sabe até quando. Assim, o genitocrata não pode ser apontado diretamente pela queda em desgraça do filho-de-santo, pois todos os outros já terão conhecimento das falhas, erros e problemas, que este irmão possuía e que, com certeza, servirão como razões para justificar este desprestígio.
Por outro lado, entre os escolhidos, sempre tem aquele que traz maior benefícios de imediato, este então é alçado a posição de destaque sobre todos os outros. Afinal, todos os genitocratas investem semprem em quem lhes trazem o maior retorno garantido, principalmente o financeiro.
Esta distinção sempre provoca ciumeira e inveja nos que foram desprestigiados, este fato é bem alimentado pelo genitocrata-títere (3), que aposta suas fichas nestas ações e reações para manter firmes as linhas invisíveis que mantém os seus marionetes facilmente manipulados.
Mas, como a lei dos 15 segundos de fama é implacável, basta falhar naquilo que é a garantia da sua situação de destaque, para o eleito cair em desgraça e ficar no limbo esquecido para sempre.
Geralmente quando isto acontece, o genitocrata nunca é apanhado de surpresa, pois como um bom estrategista ele sempre tem cartas na manga, ou seja, já existirão um ou dois filhos-de-santo preparados para serem elevados ao lugar de destaque vago. E se estes que estavam no forno se mostrarem, antecipadamente, mais promissores daquele que está sendo a bola da vez, rapidamente o coitado é derrubado de seu pedestal e em dois tempos substituído, pois rei morto, rei posto.
Assim é que se processa o modus operandi (4) dos Babalocratas e das Yaloricratas.
Filhos-de-santo existem apenas para servir aos seus propósitos de alguma forma e são totalmente descartáveis ou colocados no ostracismo (ato ou efeito de repelir, afastamento, repulsa) quando não servem mais.
Ao incauto filho-de-santo resta apenas se conformar com a nova situação e ficar pelos cantos fazendo número, ou deixar a casa que tanta dedicação e tempo da sua vida dispensou. O prejuízo é unilateral apenas.
Pior, ao querer reunir subsídios para alegar, reivindicar direitos, demonstrar seu prejuízo ou justificar a sua saída de cabeça erguida e pela porta da frente, a triste realidade lhe revela que nada de concreto ele possui nas mãos.
O poder genitocrático é invisível, com consequências visíveis somente aos olhos, ao coração e a mente de suas vítimas. Como nos filmes policialescos o filho-de-santo tem o direito de ficar calado e tudo que ele disser pode ser usado contra ele mesmo.
Nesta hora o pobre coitado se descobre só e abandonado. As vozes que poderiam somar-se em coro a sua se calam. Na verdade, elas temem, se amedrontam ou não querem perder as posições que conquistaram.
Como o processo de manipulação é intangível (não pode ser percebido) e tem o consentimento inconsciente da vítima, é difícil provar que de fato ele ocorreu. Se mesmo assim, um grito desesperado emerge de sua alma, rapidamente ele é calado, tachado de louco, mal-agradecido, filho-de-fé desajustado e vitimado por algum tipo de demanda ou algum processo de obsessão espiritual.
Os benefícios que ele recebeu pelo tempo que passou na casa espiritual, um a um são levantados e passado em revista para marcar a ferro a lembrança do que foi feito por ele.
A palavra final sempre fica com o genitocrata, que usa de toda sua influência e poder para desqualificar o agora considerado rebelde sem causa, doente sem cura, traidor e perdido na escuridão. Aliás, esta ladainha é repetida várias vezes pelo genitocrata, já que, esta é a verdade que deve imperar. Toda a coletividade tem que acreditar nisso, mesmo não sendo verdade. É o velho truque de repetirmos uma mentira um número incontável de vezes, para que ela acabe se transformando em uma "verdade".
Com sua história esquecida e suas realizações jogadas para um passado sem volta, ao filho-de-santo somente resta sair silenciosamente pelas portas do fundo, correndo sérios riscos de se transformar em "persona non grata" (5) para se dizer o mínimo.
Sentindo-se como uma nau com a vela quebrada no meio de um mar revolto, sem rumo e sem destino, decepcionados, muitos abandonam a religião.
Se questionados a posteriori do por que desta atitude, sabem listar um a um os motivos que levaram a esta situação. No entanto, ao acusador o ônus da prova e está somente existe gravado no interior da sua alma.
O despotismo exercido pela genitocracia na Umbanda tem causado muitos estragos na vida espiritual e material de muitos filhos-de-fé.
Uma das principais causas desta situação é a permissividade com que nos tornamos dependentes do inter-relacionamento com os nossos genitores espirituais.
Esta permissão que damos para que controlem as nossas vidas, deve ser combatida através de um trabalho árduo, do uso de uma fé racional e não cega, de um livre-arbitrio responsável, de nos conscientizarmos do objetivo essencial da Umbanda, que é o de proporcionar o religare (religar, unir) com o sagrado, libertando-nos das amarras de Maya (ilusão) para dirigirmos o nosso próprio destino cósmico através da evolução espiritual.
O Dalai-Lama já disse que: "A melhor religião do mundo é aquela que consegue transformar o indivíduo". Transformá-lo em um ser livre das dependências, das muletas espirituais, de alguém que tome as decisões que devemos tomar sozinhos.
Nascemos e renascemos na roda das existências para podermos vivenciar em algum instante-eternidade o encontro com o nosso Mestre Interior, somente ele nos devolve o estado consciencial da perfeição, do samadhi (estado de iluminação espiritual) ou da realização completa.
Sim, por não encontrarmos por si só este caminho, precisamos de quem nos facilite esta vivência, de quem nos permita lembrar do que já sabemos e que está esquecido, obscurecido pelas eras de existências soterrados na matéria.
Sim, precisamos de Babalorixás e Yalorixás, mas que sejam estes conscientes de suas responsabilidades como preceptores espirituais, pois também eles buscam alcançar os mesmos objetivos.
Ao exercerem suas autoridades através do poder genitrocrático, ao desistirem de serem orientadores, educadores e mentores para serem genitocratas e satisfazerem os seus desejos e egoísmos, os Pai/Mães de Santo assumem uma responsabilidade por estes atos e como sempre a Lei lhes cobrarão o equilíbrio necessário para o mal praticado.
Fora o despotismo e a sua classe genitocrata!
O sincero filho-de-fé deve combater bravamente este estado de coisas e arrancar do seio do movimento umbandista este joio.
A Umbanda agradece e as nossas evoluções espirituais também!

- Aguarde em breve a Parte II deste artigo -

Glossário:
(1) Genitocracia Espiritual: neologismo que significa o poder, força e autoridade exercida pelos genitores (Pais e Mães de Santo).
(2) neologismo: emprego de palavras novas, derivadas ou formadas de outras já existentes, na mesma língua ou não.
(3) títere: manipulador de bonecos (marionetes).
(4) modus operandi: modo de operar, fazer ou desenvolver uma atividade.
(5) persona non grata: alguém que não é mais bem-vindo a um determinado local, grupo ou coletividade.

Comentários

Anônimo disse…
seu...blogger esta muito interessante, realmente me identifico com varias partes que o senhor expos nesse artigo... beijos...
Anônimo disse…
Práticas manipuladoras existem em todas as religiões mas esse tipo de atitude não deve abalar a nossa fé. Já fui vítima de manipulação e consegui me libertar. Abandonei a casa de religião que frequentava mas segui firme na doutrina. Teu artigo é um grito de alerta a todos os ingênuos. Obrigada.

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